Dourados (MS) - Aqui estou, imerso nas minhas lembranças de que testemunhei. Recordo-me que algum tempo longínquo ouvira outras vozes, sentira outros cheiros. Exalava no ar a pureza da brisa selvagem. Ouvira gritos eufóricos que me despertava do meu devaneio. Não eram perturbadores. Eram meus bravos guerreiros, filhos do meu chão, caçando suas presas rasgando a brisa com arcos e flechas. Pés descalços, desnudos e destemidos davam vida a minha vastidão.
O pacífico se quebrou no momento em que pés estranhos apalparam o meu chão. Chegaram pelas águas, rasgando-as com suas aves flutuantes. Seus olhares pretenciosos, gelou-me a alma. Respiravam cobiça.
Enfeiticei-os com meu império. Perceberam a exuberância do meu solo. A imensidão dos meus verdes campos sem fim. Ah! E os meus mananciais com águas cristalinas, puras e variadas espécies de peixe. Deslumbraram-se com a grandeza da minha fauna e flora e a dádiva de ter como filho um santuário de beleza singular, rica e única. Para mim, Perfeição; aos outros, Pantanal. Neste moravam filhos natos da terra com suas crenças, costumes e valores.
Testemunhei muitas batalhas. Estas, nos tempos outrora, eram disputas de força e bravura. A luta era pelo domínio de quem tinham os melhores espíritos de combate e o vencedor escravizava o vencido.
O poder dos espíritos Caracará, Pacu e de outros animais e aves que se fundiam aos meus filhos seriam testados na luta pela vida. O medo do desconhecido se fundamentara. Meus guerreiros resistiram a todos os novos desbravadores, eliminando-os com heroísmo e avidez.
Porém, a bravura fora vencida, perdeu-se a inocência. Vi o crepúsculo ao meio-dia. Minhas águas límpidas, feridas e manchadas agonizavam com o murmurar dos bramidos “Filhos teus”.
Sentira pelos meus mananciais uma ira profunda. Como foram tão pérfidos? Por que não os tragou em seus sumidouros?
Sem respostas, continuei a recebê-los com antipatia. Vieram Garcia, Ayolas, Martinez, Tavares, Prados, Camponês, Francisco Lopes, Leal Sobrinho, Gonçalves Barbosa, Os Pereira da Rosa e outros a ocupar meus campos.
Demarcaram-me em linhas invisíveis. Presenciei disputas, colônias serem demolidas e Fortes conquistados ou arrasados. Aprisionaram osque aqui chegaram. Minhas águas divididas e censuradas. Línguas de fogo flamejavam o meu chão, maculando o que antes fora ilibado. O que existira, virou cinzas.
O escritor, testemunha, inspirado discorreu acerca do que vira.
Em suas províncias, os combatentes relatavam a abundância das minhas terras ditas “devolutas de vacaria”. Fizeram-me conhecido, chegaram como formigas, dominando o meu solo. Ouvira, agora, sons das vozes ora arrastadas, ora cantadas ou engolidas. Confesso que, em meio ao meu desconforto, deleitava-me com tantas descobertas.
Meus cerrados com extensa vegetação, transformados para criação de gado que amanhã seria o poderio econômico dos que aqui chegaram. Nas minhas terras férteis, semearam grãos e raízes, tornando-me absoluto em produção.
Novamente, redesenharam-me. Temi ouvir o som que quisera esquecer. A tragédia pairava no ar, mas o bom negociador reiterou a paz.
Laranjeira, esse encontrou em meus ervais nativos o chafariz da exploração e da riqueza. O progresso transformou trilhas de terras em ferrovias. A “Ferro Noroeste” trouxe o progresso. Meus ervais exportados para outras terras. Expandiram minhas campinas. As malocas se espalhavam, onde em meu paraíso crescia as flores.
Riquezas atraem poderes. Estes com calibre 44. Observei homens serem armados para defender posses e o poder do mando. Confesso que se tivesse asas, pediria ao vento a me transportar para qualquer lugar, antes desovaria o que em mim estava depositado.
O poderio divisionário acentuava-se nas lutas armadas. Novamente, mancharam o meu chão. Sonhos perdidos escoavam em nome do progresso. Este em ascensão.
Vi marchas surgirem, ocupando meus recintos. O dominado voltara a ter força. Era preciso podá-las. Novas colônias surgiram, denominadas “CAND”. Acolhi outros filhos da esperança e do sonho. Uns desses, minhas águas levaram ao romperem os fios da barca improvisada. Mas nada se iguala ao extermínio dos meus guerreiros em terras “latifundistas”.
Entre ideais, lutas, progresso e rasuras no papel, em sigilo, desmembraram-me. Nomearam-me Mato Grosso do Sul.
Gritos eufóricos surgiram, clareavam o meu céu. Para abrilhantar esse momento, o profeta apareceu.
Histórias passaram a ser construídas e desconstruídas. Meu orgulho “Perfeição” sendo degradado. Gritava a dor do incapaz. Não ouviam. Os explorares, múltiplos, chegavam com a mesma fúria de outrora. Agora, outras armas e novas atitudes. Protegeram-me com leis.
A neblina da incerteza do que viria foi se dissipando, meu espaço ocupado com novos costumes, crenças e culturas. Estes se misturaram e representam o que somos hodiernamente.
O Meu habitat natural fora transformado para atender a sobrevivência dos meus filhos adotivos. Estes se multiplicavam com a rapidez de um raio. Amava-os à medida que os conhecia. Herdei novos costumes e valores. O cozinhar exalava outros cheiros e sabores. Era de dar água na boca. Um vinha com nome de tropa: “Feijão tropeiro”.
Na fuga para a liberdade, representada na canção de independência, “Paranauê”, conheci o gingado da capoeira.
Em meio à nostalgia do passado, acordo em uma roda de tereré, a bebida mais ilustre vinda dos meus ervais. Este confidente, amigo e conselheiro. Observo ao meu redor e percebo a beleza dos que me escolheram. Sorrisos soltos a bailar os mais diversos ritmos.
Tenho filhos ilustres que cantam, narram e reproduzem minhas terras, meus natos filhos, minha história e minhas águas serenas. Estas levam descobertas, aventuras, progresso, sonhos e amores. Afinal, “As águas são a epifania da criação”, como diz o poeta.
Passear pelas minhas terras é uma aventura inenarrável, dizem os aventureiros que cruzam meus campos. Alguns desses visitam meus nativos, alojados em suas “ocas”, querendo conhecer a cultura e os costumes primitivos deles.
Na encenação, às vezes, vejo o flamejar dos meus ancestrais em um ou outro olhar. Quero gritar, acordem... pelos meus ascendentes que dormem em terras reconquistadas. Reedifique os meus campos. Reconstrua a beleza natural perdida. Que as cicatrizes e as emoções os inspirem a reencontrar o espírito de bravura esquecido. Vivam à maneira de seus costumes e de suas crenças.
Verei, outra vez, o avivar dos meus sonhos com gritos, não perturbadores, mas cheio de vida que renasce a cada despertar.
Texto de Maria Isabel Pereira Lúcio
Fonte: PROGETEC
Publicado por: tmotta@fazenda.ms